Neste mês de agosto, Mileidy Safira, 29 anos, começa a trabalhar em um novo emprego. Na última semana, ela também conseguiu sair da casa do pai e se mudar para uma kitnet. São conquistas representativas na vida de qualquer jovem adulto, mas, para Mileidy, elas têm um sentido ainda mais especial. Até pouco tempo, ela vivia uma situação de violência doméstica, perpetrada pelo ex-marido. No final de junho, Mileidy foi encaminhada ao Núcleo de Prevenção e Enfrentamento à Violência de Gênero (Nugen) da Defensoria Pública do Pará. O atendimento defensorial a ajudou a sair do convívio diário com a situação de violência, além de possibilitar a reinserção no mercado de trabalho e regulamentar o contato da assistida com a filha Anna Laura, de 1 ano e 9 meses.
Mileidy viveu com o ex-companheiro durante 5 anos. Esse período foi marcado por várias situações de agressão e conflito, que culminaram em uma denúncia feita na Delegacia da Mulher. Ela foi, então, direcionada ao Nugen. A assistida deixou a casa em que vivia com o ex-companheiro após passar por um momento de explosão de violência. “Foi assim que eu fui pra casa do meu pai, só com uma mochilinha e fui-me embora. Como eu não estou trabalhando, eu tive que ir pra casa do meu pai. Peguei minha filha e deixei na casa da avó dela porque [...] eu não tinha como manter ela e foi aí que eu vim para cá [para o Nugen] para resolver essa questão”, relata a assistida.
Desde julho deste ano, a jovem é atendida pela defensora Larissa Machado, coordenadora do Núcleo. A principal preocupação da assistida era com a situação da filha Anna Laura. Sem emprego ou residência fixa, Mileidy não tinha como cuidar da criança e custear suas despesas. “Ela está em uma situação de vulnerabilidade, possui medida protetiva em vigor. Ela tem uma dinâmica bem peculiar porque tem uma criança de 1 ano e 9 meses, estava sem emprego e explicou que, após o rompimento da separação, não tinha condições, não tinha rede de apoio para poder ficar com a criança e voltar a ser inserida no mercado de trabalho”, explica a defensora Larissa Machado.
No caminho da autonomia
A conquista do emprego é um momento decisivo para o caso de Mileidy por vários motivos. Primeiramente, ele possibilitou à assistida sair da casa do pai, onde se hospedava desde que deixou o lugar onde residia com o ex-marido. Acontece que ambos os endereços estavam no mesmo bairro, em local próximo, representando desconforto e risco para a assistida.
O novo endereço também permitiu a Mileidy estar mais próxima da irmã, que constitui a pequena rede de apoio com que ela conta, já que a mãe reside em outro estado. O emprego formal também oportunizou que a assistida largasse a jornada exaustiva e mal remunerada de diárias que vinha realizando para se sustentar, podendo, assim, ter mais tempo e condição financeira para estar na companhia da filha.
De início, a atuação da Defensoria firmou um termo de acordo extrajudicial que estipulou a guarda compartilhada de Anna Laura. Atualmente, ela fica com a avó paterna no decorrer da semana, e é entregue para a mãe às 19h de sexta-feira, permanecendo com ela até a segunda-feira de manhã. Foi pela mediação do Nugen com a empresa parceira que Mileidy conseguiu a reinserção no mercado de trabalho.
Ciclo da violência doméstica
O Instituto Maria da Penha reconhece três fases no ciclo da violência doméstica: o aumento da tensão, quando as ofensas e ameaças se intensificam; o ato de violência, quando acontece a prática de agressão e ofensa à integridade física em si; e o momento de arrependimento e comportamento carinhoso, também conhecida como “lua de mel”, em que o agressor reconhece os erros, pede desculpas e promete mudanças. A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, descreve cinco tipos de violência contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
Mileidy vivenciou todo o ciclo de abuso e sofreu violência física, psicológica, moral e patrimonial. O caso dela reproduz uma característica recorrente nas denúncias de violência doméstica, que é ter como agressor principal o companheiro ou ex-companheiro. Segundo a 4ª edição da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, realizada pelo Fórum de Segurança Pública e pelo Instituto Datafolha em 2023 tendo como referência o ano de 2022, em 31,3% dos casos de violência sofrida pelas brasileiras, o agressor era o ex-companheiro, seguido por um índice de 26,7% do atual companheiro.
“A situação da assistida Mileidy é uma situação bem comum nos dias atuais no contexto da violência de gênero, uma vez que é uma questão interseccional. Ela é uma mulher que está fora do mercado de trabalho há bastante tempo, que executava as tarefas domésticas, um trabalho invisibilizado e naturalizado como uma tarefa ao gênero feminino. E, após o rompimento dessa relação, ela não tem uma rede de apoio, não tem o suporte de uma renda financeira, e sai dessa relação numa situação completamente desigual e desfavorável”, explica a defensora Larissa Machado.
Mileidy também se enquadra no perfil de grande parte das assistidas pelo Nugen, do ponto de vista do atendimento jurídico. Segundo o anuário do Núcleo de 2023, naquele ano estiveram entre os principais serviços prestados o acompanhamento de medidas protetivas e de guarda. Também da mesma forma que Mileidy, 1.615 dos atendimentos do Núcleo chegaram por meio da Delegacia de Atendimento à Mulher.
Por fim, a defensora também reforça uma questão que se repete entre as mulheres em situação de violência doméstica: a denúncia feita tardiamente. Mileidy vivenciou o ciclo de violência mais de uma vez antes de decidir a fazer a denúncia. O sentimento de pena em relação ao agressor, associado à vergonha de não ter agido logo na primeira agressão e o receio de ser considerada culpada por ter permanecido no ciclo de violência foram motivos para que ela adiasse a denúncia.
“O que eu tenho para falar pras mulheres por aí é para não ficar com medo de denunciar como eu fiquei, entendeu? Fiquei com medo, fiquei com pena. É para elas irem porque, no final, vai dar certo e ninguém fica desamparada. Eu pensei que eu ia ficar desamparada. E eu não fiquei. Aqui [no Nugen], me ajudaram a resolver essa situação”, conta Mileidy.
A defensora Larissa Machado explica que a demora para denunciar faz parte da constituição da violência de gênero como um fenômeno enraizado de modo estrutural na nossa cultura e nos nossos costumes. Logo, muitas mulheres em situação de violência são resistentes a dar o primeiro passo também por não reconhecerem a própria violência que sofrem.
“Muitas vezes, a mulher precisa de um tempo para entender e precisa também reunir condições emocionais e materiais para poder pedir socorro. Então, atuar com a questão da violência doméstica, trabalhar com mulheres em situação de vulnerabilidade, requer muito além do próprio conhecimento da lei, requer uma atuação com sensibilidade, com empatia”, finaliza a defensora.
Novos rumos
“Olha, eu demorei muito para sair do relacionamento. Eu sei que não é fácil, ainda mais quando você não trabalha, depende do cara, do marido, e não tem ninguém pra ficar com a sua filha para você trabalhar”. As palavras de Mileidy refletem o processo e as preocupações de muitas mulheres em situação de violência.
Hoje ela comemora a coragem que teve e faz planos para o futuro. “Eu estou muito feliz que eu consegui alugar lá o meu cantinho para mim, para minha filha. E eu tenho uma irmã que me ajuda muito. É como se fosse uma segunda mãe para mim. E o próximo passo é trabalhar, consegui comprar as coisinhas, uma televisão, uma guarda-roupas, essas coisas assim, que eu vou conseguir, já botei na minha cabeça que eu vou conseguir”, relata.
Para as mulheres que ainda estão no processo de se fortalecer e conseguir pedir ajuda, ou mesmo ainda não reconhecem estar passando por uma situação de violência, Mileidy deixa palavras de esperança.
“O que eu tenho para falar é que no final dá certo. A gente é mulher, a gente é forte, a gente consegue, sim, entendeu? Não é fácil. Mas com a ajuda, nem que seja uma amiga para ajudar, para amparar numa casa, a gente consegue, sim. Eu nunca pensei que eu fosse sair desse relacionamento, mas eu consegui e todo mundo consegue. Toda mulher consegue”, conclui a assistida.
Serviço
O Núcleo de Prevenção e Enfrentamento à Violência de Gênero (Nugen) atua de forma judicial e extrajudicial em defesa dos direitos das mulheres em situação de violência de gênero. Em Belém, o Nugen fica localizado na Travessa 1° de Março, nº 766, bairro Campina. Para solicitar atendimento, entre em contato pelos números (91) 991726296; (91) 981216771; (91) 32394070; (91) 33428606. Em Ananindeua, o endereço é Rua 2 de Junho, nº 2-54, bairro Centro. O contato é pelo número: (91) 98471-2234. O atendimento é de segunda a sexta-feira, das 8h às 14h.
Sobre a Defensoria Pública do Pará
A Defensoria Pública é uma instituição constitucionalmente destinada a garantir assistência jurídica integral, gratuita, judicial e extrajudicial, aos legalmente necessitados, prestando-lhes a orientação e a defesa em todos os graus e instâncias, de modo coletivo ou individual, priorizando a conciliação e a promoção dos direitos humanos e cidadania.
Texto por Juliana Maués, sob supervisão de Carolina Lobo